O Mito do “BDSM Real”
- Mestre LenHard

- 13 de nov.
- 6 min de leitura

Por que tanta gente ainda acredita que só é
“Praticante Real” quem aparece em eventos ou
performa em cenas públicas?
A Raiz da Confusão:
Quando Visibilidade Parece Autenticidade
A crença de que só é “Praticante Real” quem frequenta eventos ou faz cenas públicas surge de um fenômeno simples: o BDSM sempre viveu entre o privado e o secreto. E tudo que é secreto tende a ser validado por quilo que é visível.
Quando a internet explodiu e eventos passaram a ser fotografados, comentados e compartilhados, a ideia de “estar lá” virou um marcador social.
Não é competência.
Não é habilidade.
É apenas presença.
A psicologia chama isso de heurística da visibilidade: aquilo que aparece parece mais verdadeiro do que aquilo que acontece fora do olhar público.
A Mística da Cena Pública:
Ritual, Performance e Ego Social
Uma cena feita em evento é, por definição, uma performance: existe público, existe contexto, existe preparação estética e existe narrativa.
Isso pode ser poderoso. Mas não faz de ninguém mais experiente do que quem pratica em intimidade.
Pesquisadores como Weiss (2011) e Newmahr (2010) observaram que o “campo público” cria:
status simbólico
rituais de pertencimento
códigos de observação
validação entre pares
Ou seja: eventos constroem capital social — não necessariamente competência prática.
O Fator Identitário:
Quem Somos Sem Plateia?
Muitas pessoas projetam sua própria insegurança no ambiente público. Para elas, a plateia funciona como um espelho:
Se estão sendo vistas → sentem-se “praticantes válidos”.
Se não são vistas → sentem-se “inexistentes”.
Esse mecanismo é descrito na psicologia social como autoafirmação externa:
a identidade depende da validação do grupo.
No BDSM, isso se manifesta como:
“Se ninguém vê, não conta.”
“Se não foi em evento, não é real.”
“Prática privada é fantasia, não é BDSM.”
Nada disso é verdade. Mas se repete porque cria hierarquia simbólica — e muita gente se apega a hierarquias para se sentir pertencente.
A Realidade Técnica:
Praticantes Silenciosos São a Maioria
Estudos de comportamento sexual alternativo, como os de Reiersøl & Skeid (2006), mostram que:
A maior parte dos praticantes não participa de eventos.
A maioria não realiza cenas públicas.
A prática doméstica ou intimista é estatisticamente dominante.
Ou seja: o grupo dito “invisível” é, na verdade, o mais numeroso.
Quem pratica no privado não é minoria —é apenas menos barulhento.
a) Newmahr — Playing on the Edge (2010)
A antropóloga Staci Newmahr realizou um trabalho etnográfico extenso em grupos BDSM dos EUA. Sua pesquisa mostra que grande parte do “sentimento de autenticidade” no BDSM surge do que é visto e testemunhado entre pares, não necessariamente da profundidade técnica da prática.
Ela descreve como cenas públicas funcionam como um “teatro social” em que:
os praticantes observam e avaliam uns aos outros,
comportamentos visíveis são considerados mais ‘reais’,
e práticas privadas tendem a ser invisibilizadas.
Newmahr identifica um mecanismo de validação coletiva:
“O que é testemunhado tende a ser entendido como mais verdadeiro do que aquilo que não é visto.”
Ou seja, ver = validar.
E não ver = presumir que não existe.
Esse é o primeiro tijolo do mito contemporâneo do “Praticante Real”.
b) Margot Weiss — Techniques of Pleasure (2011)
Weiss também estudou práticas BDSM em espaços públicos. Sua análise revela que eventos e encontros do meio social BDSM criam sistemas de prestígio interno — dinâmicas em que quem aparece mais, performa mais ou é mais visto tende a ganhar um status simbólico maior.
Ela identifica três fenômenos centrais:
Capital de visibilidade — quem performa em público acumula prestígio.
Efeito plateia — comportamentos mudam quando se sabe que há observadores.
Confusão entre popularidade e habilidade — mais visto ≠ mais competente.
Weiss afirma que eventos podem reforçar a ideia equivocada de que o BDSM público é “mais real” porque gera hierarquias claras — algo que o BDSM privado não produz visivelmente.
Isso alimenta o mito de que cena pública = maturidade técnica. E não é verdade.
c) Reiersøl & Skeid (2006)
Esses autores conduziram uma das pesquisas mais amplas sobre comportamento BDSM em países europeus. A conclusão é cristalina:
A maioria absoluta dos praticantes vive sua sexualidade alternativa em privado,
a presença em eventos é minoritária,
e a principal forma de prática é a intimidade doméstica.
Ou seja: o “praticante silencioso” não é exceção — é norma.
Eles também apontam que grande parte do estigma social externo leva muitos praticantes a evitar eventos, reforçando o caráter privado da vivência.
Essa evidência desmonta diretamente o mito do “só é real quem aparece”.
d) Baumeister (1988) — Masochism as Escape from Self
Baumeister não escreveu sobre BDSM como cultura, mas sobre masochismo psicológico e dinâmicas de controle.
Sua teoria mais relevante aqui é a “fuga do self”, que sugere que certas expressões de submissão ou dominação só fazem sentido quando há estrutura, contexto e segurança emocional — elementos que podem existir tanto em público quanto em privado.
O ponto essencial de Baumeister:
A construção da identidade em práticas de poder depende fortemente do modo como o indivíduo se enxerga e é percebido pelos outros.
Aplicado ao BDSM, isso explica por que algumas pessoas só se sentem “praticantes reais” quando vistas — a presença da plateia organiza a identidade delas.
Mas isso não significa que quem não quer ser visto seja menos real — significa apenas que se baseia em outra matriz psicológica, mais interna e menos performática.
e) Goffman (1956) — The Presentation of Self in Everyday Life
Goffman não fala de BDSM, mas explica um conceito universal: papéis sociais são sempre performances — e cada pessoa gerencia sua imagem conforme o público presente.
Aplicado às cenas públicas, funciona assim:
O praticante “entra em personagem”
ajusta linguagem corporal e gestos,
adapta o estilo da dinâmica para o público,
e intensifica elementos visuais ou auditivos.
Goffman chama isso de “front stage behavior” — comportamento de palco. Na prática BDSM pública, o “front stage” pode criar a impressão de força, experiência ou controle técnico que nem sempre corresponde à vida íntima da pessoa.
Já o BDSM privado é o “backstage” — onde não há público, máscara nem narrativa performática.
A aplicação direta: Se existe performance, existe também distorção de autenticidade. E isso é normal — não é errado. Mas significa que o público, por si só, não garante realismo.
Essas cinco referências mostram que:
visibilidade cria prestígio,
prestígio gera hierarquia,
hierarquia produz normas implícitas,
normas implícitas levam ao mito do “praticante real”.
E todas convergem para a mesma verdade acadêmica:
Ser visto nunca foi pré-requisito para ser real. Ser competente nunca dependeu de
plateia. E autenticidade nunca dependeu de evento.
O Núcleo da Questão: Controle, Ego e Narrativa
Alguns defendem que só “é real” o que acontece em espaço público porque:
facilita controle social
permite medir o outro
fortalece a própria posição no meio
cria sensação de pertencimento
elimina o medo do invisível
O discurso funciona como uma tentativa de ditar regras para algo que, por natureza, não aceita regras fixas.
É uma forma de gatekeeping: “Se não fizer como eu faço, não é real.”
Mas o BDSM sempre foi diverso, privado e profundamente personalizado.
A Verdade Simples (e Incômoda):
BDSM Real é o Que Acontece Entre Duas Pessoas Que Sabem o Que Estão Fazendo
Não depende de plateia. Não depende de evento. Não depende de foto.
Depende de:
consentimento claro
maturidade emocional
técnica adequada
comunicação real
ética e responsabilidade
autoconhecimento
Quem precisa de palco busca validação. Quem busca verdade constrói intimidade.
Referências Bibliográficas
Roy F. Baumeister — Masochism and the Self (1988) / Masochism as Escape from SelfLink: https://www.taylorfrancis.com/books/mono/10.4324/9781315807713/masochism-self-roy-baumeister Taylor & Francis
Erving Goffman — The Presentation of Self in Everyday Life (1956/1959)Link: https://www.penguinrandomhouse.com/books/61106/the-presentation-of-self-in-everyday-life-by-erving-goffman/ PenguinRandomhouse.com+1
Staci Newmahr — Playing on the Edge: Sadomasochism, Risk, and Intimacy (2010/2011)Link: https://iupress.org/9780253222855/playing-on-the-edge/ Indiana University Press
Margot Weiss — Techniques of Pleasure: BDSM and the Circuits of Sexuality (2011)Link: https://www.dukeupress.edu/techniques-of-pleasure dukeupress.edu+1
Ove Reiersøl & Ståle Skeid — The ICD Diagnoses of Fetishism and SM (2006)Link: https://revisef65.org/2015/10/10/the-icd-11-revision-scientific-and-political-support-for-the-revise-f65-reform-second-report-to-the-world-health-organization/ revisef65.org
Encerramento
Você está praticando para ser visto
ou está sendo visto por você mesmo?
Ser real não é aparecer. Ser real é sustentar.
Eventos são vitrines; intimidade é fundamento.
Quem precisa de plateia busca validação.
Quem busca verdade escolhe profundidade.
No BDSM, alguns querem aplausos. Outros querem evolução. Os dois caminhos existem — mas só um te fortalece de verdade.
Convido você a visitar nossa loja e explorar os acessórios exclusivos do Studio ToyMaker, onde a excelência em couro se encontra com o desejo e a elegância.
Aproxime-se da nossa comunidade: conteúdo, conhecimento e maturidade para quem leva o desejo a sério.
Studio ToyMaker,
mais que acessórios: Cultura, Desejo e Elegância.





Comentários