Esta história de comunidade de BDSM é algo que escuto desde que entrei no meio a mais de 20 anos, e sempre ficou um gosto ruim na boca quando se fala desse termo, algo realmente me incomoda nisso.
Visto isso fui pesquisar sobre os conceitos de comunidade para melhor entender e cheguei a uma conclusão. Muito provavelmente não será o que você gostaria de ouvir, mas estou aqui para partilhar a minha experiência, não necessariamente lhe agradar.
Portanto para criar uma linha de pensamento, precisamos em primeiro lugar sempre, entender os conceitos básicos das palavras que falamos, ou seja, a Etimologia (disciplina que trata da descrição de uma palavra em diferentes estados de língua anteriores, até remontar ao étimo, estudo da origem e da evolução das palavras.)
Posto isso, vamos compreender qual a base de Comunidade, segundo o dicionário Oxford.
O que é Comunidade ?
Anglo-normando e francês médio communité, comunité propriedade conjunta (c. 1130 em francês antigo; também em francês antigo como communeté), relações, associação (c. 1150 ou anterior em anglo-normando), nação ou estado (século XII), corpo de pessoas que vivem no mesmo lugar, geralmente compartilhando uma identidade cultural ou étnica comum (c. 1370), sociedade religiosa (1378)
latim clássico commūnitāt-, commūnitās posse ou uso conjunto, participação, compartilhamento, relacionamento social, companheirismo, sociedade organizada, natureza ou qualidade compartilhada, parentesco, obrigação.
latim pós-clássico também direito de comum, corpo de pessoas que vivem em uma cidade (freqüentemente a partir do século XII em fontes britânicas), pessoas comuns, sociedade religiosa, corpo monástico (a partir do século XIII em fontes britânicas) < commūnis common adj. + ‑tās (ver sufixo ‑ty 1 ; comparar sufixo ‑ity ).
“Estado ou qualidade das coisas materiais ou das noções abstratas comuns a diversos indivíduos; comunhão”, essa é a definição de “comunidade” segundo o dicionário de Oxford. A origem do termo vem do Latim COMMUNITAS, “comunidade, companheirismo”, de COMMUNIS, “comum, geral, compartilhado por muitos, público”.
E apesar de ser muito antiga (já usado por Aristóteles), foi no século XIX que a palavra ganhou um conceito mais aprofundado.
Agora em base da etimologia da palavra podemos começar a entender o que seria uma Comunidade BDSM, ou seja, um ambiente onde TODOS seguem as mesmas regras, culturas, direcionamentos, de forma organizada, compartilhando uma identidade cultural comum, quase (ou se não) de forma religiosa.
Oras, mas eu não vejo isso no BDSM. Apesar de ter uma cultura base, existem inúmeras possibilidades que chegam até a doer à cabeça se pensar muito nelas.
Em minha experiência de vida “baunilha”, eu já vivi em uma “comunidade agro-ecologica” e essa discussão de o que é comunidade era freqüente, porque como éramos um loteamento de casas, para nos tornarmos uma Eco-Vila teríamos que ter uma “COLA”, algo que realmente nos unisse como comunidade e que todos seguissem a mesma linha na mesma direção. E eis o Desafio Hercúleo de se criar uma comunidade, cada um pensa e sonha de uma forma diferente, tem criação e bases sociais, religiosas e políticas diferentes, portanto como juntar todo mundo no mesmo caminho?
No caso de comunidades agro-ecologicas, existem as que são baseadas em espiritualidades, outras em plantio orgânico e outras ainda com foco em reciclagem, isso como exemplo. Mas a que eu participei, não conseguiu definir essa “cola”, porque basicamente o que “unia” as pessoas era o fato de construir suas casas (mas não a convivência pós a construção, o que é o real desafio). No fim das contas, após diversas reuniões e gerações diferentes de construtores, chegaram à conclusão de que naquele momento e daquela forma não era uma comunidade. Além disso varias coisas aconteciam de forma escusa, como “cancelar” pessoas que não pensavam iguais a um grupinho na liderança administrativa, brigar por causa de bichos (cães, gatos, aves), inadimplência nos pagamentos, e toda a sorte de problemas diários que com certeza você também tem no seu prédio de apartamentos ou no seu bairro, como aquele vizinho que resolve escutar o estilo musical que você menos gosta, no ultimo volume, domingo de manhã, porque é a folga dele, e logicamente que todos os vizinhos vão curtir o excelente gosto musical dele. Entendeu o ponto?
Ok, se você acompanhou a linha de pensamento até agora, extrapole esses exemplos e até os seus próprios, que com certeza você já lembrou, e pense no BDSM.
Pensou? Não fique desesperada, com o seu pensamento, esta é a realidade.
Vou citar aqui alguns exemplos, e não estou sendo o chato, mas o realista. No BDSM, tem um monte de pára-quedistas que acham que se trata de mandar, gritar e bater. Temos gente que acha que se trata de sexo fácil. Outros que julgam seus fetiches e estilos de vida mais importantes e “sérios” do que o do coleguinha. No BDSM, temos os vizinhos com gosto musical impecável que nos forçam amigavelmente a escutar, mesmo nós não querendo. Temos as pessoas que não gostam umas das outras, ou por fofoca ou porque a cor do olho não as agrada. Isso sem falar de diferenças, religiosas, políticas, sexuais, raciais, etc...
E se for pensar na nossa “cola”, o que nos une de fato? Qual é a ÚNICA COISA que 99,99% dos praticantes de BDSM, Kink e Fetichismo concordam? CONSENSUALIDADE, somente isso que uma grande maioria diz concordar, se não é abuso. Embora sempre vá ter uma ínfima porcentagem que discorde e isso é normal.
Nossa, mas então não existe uma COMUNIDADE BDSM?
De acordo com a minha visão lógica, tenho uma triste noticia para você, realmente não existe uma COMUNIDADE BDSM, no sentindo da etimologia da palavra. Mas não é hora de pegar sua corda de bondage e pensar em besteira. Existe sim uma coisa que é pouquíssimo falada, que é a SOCIEDADE BDSM.
Poxa mas você mudou uma palavra, e essa sim existe? Sim, existem Grandes Sociedades BDSM (Globais, Federais, Estaduais ou Municipais), e inúmeras pequenas comunidades de BDSM. O que não existe é conceito de uma Grande Comunidade BDSM, isso é lenda.
Mas o que é uma sociedade? Vamos novamente à etimologia para entender?
Sociedade é uma associação entre indivíduos que compartilham valores culturais e éticos e que estão sob um mesmo regime político e econômico, em um mesmo território e sob as mesmas regras de convivência. A sociedade não é um amontoado de indivíduos, mas um sistema organizado deles e ordenado em uma estrutura social, com um arcabouço normativo e com instituições formais e informais (Estado, família, Igreja, escola etc.) — que ensinam esse repertório de prescrições, fomenta a unidade cultural, punem a transgressão das regras, socializam os indivíduos, definem uma gama de papéis que eles podem desempenhar e mantêm a coesão social, econômica e política.
O que é sociedade?
A etimologia da palavra sociedade remete ao latim, sujeitas, que significa associação “amistosa com outros”. Sociedade é uma palavra polissêmica, isto é, pode ter variados significados conforme o enfoque, a corrente teórica e mesmo a disciplina. O agrupamento humano sob regras e costumes comuns existe desde os primórdios da humanidade.
Como aponta o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro,
“a sociedade é uma condição universal da vida humana”
Trata-se de uma necessidade biológica e simbólica. Biológica porque somos predispostos geneticamente à vida em sociedade e ao desenvolvimento de habilidades indispensáveis à nossa sobrevivência e que envolvem simultaneamente o físico e o intelecto, como a linguagem e a técnica em qualquer tipo de trabalho.
É uma necessidade simbólica porque, além de suprir nossas necessidades físicas, precisamos dar sentido a elas, e isso requer o desenvolvimento de um arcabouço moral e cognitivo que defina parâmetros de como fazer e por que fazer algo, o que passa pela definição de regras, rituais e significados compartilhados com nossos semelhantes. Assim, o comportamento humano não é fundado em instintos, mas em normas que orientam suas ações e a organização social do seu grupo, as quais são acumuladas historicamente e também podem ser modificadas no presente.
Essas normas são aglutinadas em instituições que criam parâmetros e ordenam as relações humanas. As instituições modificam-se no tempo e no espaço, mas a existência de regras na socialização humana é invariável, é, em última instância, o que nos caracteriza como humanidade, seres sociais, cuja satisfação biológica passa inevitavelmente pelo desenvolvimento de capacidades sociais, isto é, que requerem trocas cognitivas e morais na interação com os iguais.
Uma sociedade é um agrupamento humano, em determinado recorte espacial e temporal, regido por normas comuns, culturais e/ou escritas, e unido pela consciência de pertencimento. Sua organização abrange todas as dimensões da vida humana: um sistema econômico que viabilize a produção e distribuição de riqueza entre seus membros; um sistema político e jurídico que medeie às relações, solucione conflitos, proteja a integridade da vida, concilie as diferentes demandas e interesses, determine e delegue as punições a quem infringir as regras; um sistema educacional que abarque família, escola, instituições religiosas e culturais, que oriente o processo de socialização, inculcando o conteúdo ético e cultural característico desse povo e preparando as gerações mais novas para seu ingresso no sistema econômico.
As sociedades não são meramente a soma de indivíduos, mas um sistema formado pela associação entre indivíduos. Dessa forma, há uma organização, com instituições formais e informais, uma estrutura social que pode ser hierárquica ou não, e papéis sociais designados aos seus componentes. Esse arranjo permite a previsibilidade necessária para uma harmônica convivência entre as pessoas, permite também o planejamento e persecução de interesses individuais ou comunitários. Estudar como essa organização social é formada, operada e modificada é tarefa elementar da sociologia enquanto disciplina.
Viram só? O que você e vários outros costumam falar “comunidade” na realidade é uma sociedade. E qual a grande diferença? É que em uma sociedade existe a pluralidade, cada ser individual traz a sua experiência pessoal e ajuda a criar a sociedade, e com isso ela se modifica com o tempo. Mas não se trata de um grupo social com um objetivo único e focado, aí é uma comunidade.
Conclusão
Portanto depois de estudar, ler, observar e compreender esses conceitos, a minha conclusão é que no BDSM vivemos em uma Grande e Plural Sociedade, composta por diversas pequenas comunidades, que hora se unem e hora se “matam”, onde a Consensualidade é nossa “cola” e a pratica BDSM, Fetichistas e de Liberdade é o nosso Norte.
Espero que tenham gostado desse texto, embora denso e muito filosófico, eu creio que seja necessário. Se você tiver algum comentário relevante para ajudar a melhorar essa linha de pensamento, será legal te ouvir, aí pode incluir aqui nos comentários do Blog.
Mas caso queira me ouvir falar sobre esse assunto em um vídeo, clique nesse link, você vai para o Canal de Youtube Espaço ToyMaker. No mais muito obrigado pela a atenção e estou aberto às dicas, sugestões de temas e umas curtidas não fazem mal a ninguém não é mesmo
Na sociedade as pessoas vivem juntas de forma impessoal, já em uma comunidade elas possuem relações mais próximas, tem muitas coisas em comum procuram se alinhar. Eu entendi.
Faz sentido.